Indústria naval <br>- memória e futuro

Gustavo Carneiro

O Grupo Parlamentar do PCP apresentou, com intervalo de alguns meses, dois projectos de lei relacionados com a indústria naval: um, apresentado em Maio (cujo conteúdo essencial foi já tratado nas páginas do Avante!), visa a criação do Museu Nacional da Indústria Naval; o outro, de 24 de Julho, pretende extinguir o «Arsenal do Alfeite SA» e reintegrar o Arsenal do Alfeite na orgânica da Marinha. Ambos contêm uma visão estratégica da importância deste sector para o desenvolvimento do País.

Até há pouco mais de duas décadas, a construção e reparação naval era um dos sectores industriais predominantes na Península de Setúbal, particularmente no concelho de Almada. Em empresas como a Parry & Son, a Companhia Portuguesa de Pesca, a Sociedade de Reparação de Navios, a Lisnave e o Arsenal do Alfeite trabalharam muitos milhares de operários, de cujas mãos saíram embarcações de todo o género e proveniência.

Hoje, resta o Arsenal do Alfeite. Todas as outras empresas encerraram: a CPP em 1977 e a SRN poucos anos depois; a Parry & Son em 1986; a Lisnave entre 1999 e 2000, depois de ter sido «vendida» – por um euro (!) – pelo Grupo Mello a dois quadros da empresa, travestidos em carrascos. A evolução deste sector, outrora tão dinâmico e hoje praticamente inexistente, é em si mesma uma frontal acusação ao processo contra-revolucionário e seus protagonistas.

Mas a indústria naval deixou fortíssimos impactos na paisagem urbana do concelho de Almada – praticamente toda a sua frente ribeirinha, do Ginjal ao Alfeite, mantém ainda hoje marcas profundas desta actividade económica – e no imaginário colectivo da sua população: as empresas do sector, antes e depois do 25 de Abril, foram palco de duras lutas de classe, constituindo-se como poderosos bastiões da resistência à exploração e verdadeiras «fábricas» de militantes e quadros do PCP e do movimento sindical unitário: na memória permanecem, como alguns dos momentos maiores, as greves de 1943, na qual tiveram participação activa os operários e os comunistas da Parry & Son; e a «greve das sete semanas», contra os salários em atraso na Lisnave, que culminou, em Julho de 1983, com a ocupação do estaleiro da Margueira pela polícia de choque e a tenaz resistência dos trabalhadores e da população de Almada, Cacilhas e Cova da Piedade.

Salvaguardar e valorizar o património da indústria naval – como o PCP se propõe a fazer com a criação do museu – é uma questão de preservação de uma memória essencial para toda uma população e, ao mesmo tempo, uma afirmação da importância económica e social deste sector e das potencialidades existentes para a sua recuperação.

Salvar o que resta

Desde que, em 2009, foi separado da Marinha e transformado em «Sociedade Anónima de capitais públicos» integrada na Empordef, o Arsenal do Alfeite não tem parado de se afundar: dos 1160 trabalhadores que tinha, restam 600; as melhorias prometidas não só não se concretizaram como as capacidades instaladas na empresa se degradam de dia para dia; a Marinha, razão de ser da criação do Arsenal, passou a ser tratada como mais um cliente, ao mesmo tempo que as novas encomendas que a «empresarialização» inevitavelmente traria... afinal não surgiram.

A avolumar as apreensões com o futuro do único estaleiro naval do concelho de Almada está a evolução de outras empresas que, de uma forma ou de outra, passaram por processos similares: as Oficinas Gerais de Material Aeronáutico OGMA, outrora pertencentes à Força Aérea, foram igualmente transformadas em «SA» e estão hoje nas mãos da multinacional brasileira de aeronáutica Embraer (o que levou a que a Força Aérea tivesse que se dotar dos seus próprios meios de manutenção); os Estaleiros Navais de Viana do Castelo, igualmente integrados no grupo Empordef, foram extintos e as suas instalações concessionadas a uma empresa, a Martifer, que nem sequer dá garantias de se vir a dedicar à construção e reparação naval.

Se isto merecia, por si só, a intervenção política do PCP, uma recente decisão do Governo veio torná-la incontornável: a extinção do grupo Empordef, com a consequente privatização ou internalização das suas empresas. No projecto de lei que (re) apresentou, o PCP é claro: «No caso do Arsenal do Alfeite, excluída que deve ser, em absoluto, a possibilidade de privatização, só resta a internalização, a qual, só pode logicamente ser concretizada com a reintegração na Marinha».

O regresso do Arsenal do Alfeite a um quadro de onde nunca deveria ter saído pode não resolver todos os problemas da empresa, mas é a única solução segura para que não venha a ter o mesmo fim das OGMA, dos ENVC e de todos os outros estaleiros com os quais, em tempos não muito distantes, coexistiu no concelho de Almada.

 



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